top of page

Memória Gráfica

2022

Cristiana Tejo

Colégio Pedro II, Rio de Janeiro

Na saída da estação Maracanã do metrô há uma passarela para pedestres que se bifurca em direção à Uerj e ao Estádio Maracanã. No pilar que ergue a passarela alguém escreveu em letras garrafais a palavra sorte. Observar essa situação urbana levou o artista Marcos Abreu a refletir sobre a questão da ascensão social das pessoas que nascem nas margens da sociedade brasileira. As interpretações que o cenário instigou apontavam para o entendimento de que seria necessária sorte tanto para conseguir estudar na universidade pública, quanto para se tornar um grande astro do futebol ou que a sorte/destino da população mudaria positivamente caso ocorresse o ingresso em um dos dois ambientes. Neste âmbito, sorte aproxima-se de outro conceito escamoteador da colonialidade do saber e do poder no Brasil, a meritocracia. Ao olharmos para a excepcionalidade e o esforço individual não enxergamos as estruturas que não permitem uma real transformação social em larga escala.


A cidade, para Marcos Abreu, é um grande texto, sendo os outdoors, os cartazes, os pôsteres, a pixação, os escritos nas estruturas urbanas lidos como mancha gráfica e escritura. Por isso a cena presenciada no Maracanã não passou desapercebida e acabou por ser o ponto de partida de uma ampla série de obras que investiga a divisão social do trabalho entre o intelectual e o manual e o papel da educação nesta separação. Parte dessa produção recente encontra-se nesta exposição Memória Gráfica. Apesar de não terem sido pensadas especialmente para a galeria do Colégio Pedro II, as obras dialogam potentemente com a história da instituição e a localização do campus, no bairro de São Cristóvão. A gênese deste conjunto de trabalhos foi a intervenção gráfica nos uniformes de escolas públicas de grande destaque, incluindo os do Colégio Pedro II, como resposta às mobilizações estudantis que tantas vezes tomam as ruas das cidades brasileiras. Os adesivos e bottons colados nas camisas dos estudantes perderam seus textos e permaneceram como formas persistentes que interligam as lutas daquele ano às de outrora e às que ainda virão. As palavras que agora estampam os uniformes são sorte e sonhos. Acontecimentos recentes nos fazem ressignificar esses signos gravados nas fardas, já que nem mesmo uniformes escolares protegem da morte crianças e jovens negros das comunidades mais desfavorecidas em ações da polícia no Rio de Janeiro.


Nos vídeos, a repetição do gesto de riscar, sublinhar e circular evidenciam a operação gráfica e sua relação com a divisão do trabalho. Num deles, vemos a intercalação entre o movimento da mão que desenha com um lápis uma elipse e o da máquina produzindo cimento. Para além da contraposição humano/máquina, temos uma cadência de ritmos e a sobreposição da cor cinza do grafite e do cimento. Na construção de uma casa, o desenho antecede a subida da estrutura e essas etapas marcam diferenças sociais dos sujeitos que as praticam. No outro vídeo, o procedimento de intervenção ocorre sobre trechos da tese de Marcos que são sublinhados/rasurados/reescritos com círculos e elipses, gerando uma nova constelação textual. É neste ponto que nos aproximamos de Herança Cinza, uma série que entrelaça a história da família do artista com a questão da mobilidade social e da educação no Brasil. A base dos trabalhos são documentos (diploma, carteira de trabalho, fotografias) que traçam o percurso de vida de seus pais e avós maternos, moradores da Vila Isabel, bairro próximo a São Cristóvão, entre os anos 1940 e 1990, e materiais gráficos de interesse como as imagens de uma embalagem de cimento Vitória e contracapa do livro A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. Por cima dessas bases, são sobrepostas palavras como fábrica, morro, diploma, cinza, escola, assinatura, cimento, prerrogativa, direito, sina, entre outras, e formas geométricas. Novamente o procedimento de velar com tinta e vocábulos, acaba por revelar outras camadas dessas escrituras. Neste caso, a atemporalidade e a coletividade desta questão. A rasura no texto do doutorado, último degrau da educação formal, arremata o ciclo iniciado por seu avô migrante nordestino que trabalhou numa fábrica de tecidos e construiu a própria casa, entre outras na vizinhança do morro da Vila Isabel, como pedreiro autodidata. Sem aperceber-se, enquanto investigava o mundo do trabalho da construção civil e as causas socioeconômicas e educativas da estratificação social, acabava por aproximar-se de sua própria origem. O esforço de duas gerações propiciou que Marcos Abreu não tivesse que decidir entre universidade e futebol. Esperamos que políticas públicas para a educação, igualdade racial, social e de gênero possam alterar definitivamente as estruturas coloniais persistentes.


bottom of page