O mundo do trabalho
2025
Thiago Fernandes
Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, Rio de Janeiro
Durante seis meses, o artista Marcos Abreu habitou uma casa em construção no Engenho do Mato,em Niterói. Quando digo que o artista habitou, não quero dizer que ele fixou moradia naquele local, pois sua chegada se deu com a obra ainda em estágio inicial. O que existia era um terreno praticamente vazio, pertencente a um amigo que o cedeu temporariamente para a realização de trabalhos artísticos – uma mistura de trabalho de campo e ateliê. Entretanto, Abreu praticou aquele espaço, apropriou-se dele de modo a construir significados, enquanto a casa ia ganhando forma.
Ao praticar e resignificar o espaço, Abreu o habitou, insisto no termo, se compreendermos que o habitar e o construir são atividades cuja relação não se deixa representar adequadamente pelo esquema meio-fim. Construir já é, em si mesmo, habitar. Quem diz isso é o filósofo Martin Heidegger, em um texto intitulado “Construir, habitar, pensar”. Suas ideias nos ajudam a compreender o construir como um processo contínuo, e não como uma etapa anterior ao habitar. Em suas palavras, “não habitamos porque construímos. Ao contrário. Construímos e chegamos a construir à medida que habitamos”. Uma vez que somos corpos que ocupam um lugar no espaço, somos seres que habitam, construindo e praticando lugares.
Naqueles seis meses, Abreu habitou a casa em construção no Engenho do Mato, ao lado dos pedreiros que atuavam no processo de edificação. O artista também estava construindo. Enquanto a casa era erguida, aquele espaço era preenchido de significados por meio das suas ações. Ações que logo deixaram de ser apenas suas, pois os pedreiros passaram a intervir poeticamente no espaço, motivados pela presença do artista. A partir de então, as identidades se embaralharam, assim como os sentidos de obra e trabalho foram revirados. Obra e trabalho: substantivos recorrentes tanto no vocabulário da construção civil quanto no da arte. Seus significados, no entanto, apresentam particularidades em cada contexto. Uma edificação atende a uma demanda e a uma finalidade prática. Já um trabalho de arte não necessariamente atende a um comissionamento e tampouco tem a utilidade em sua essência. O artista, desse modo, goza da liberdade de realizar uma obra/trabalho que existe por si mesma. Mas o que passou a ocorrer na obra da casa do Engenho do Mato foram momentos em que os pedreiros, em pausas do seu trabalho produtivo, passaram a intervir na casa tal como o artista.
As primeiras intervenções de Abreu no espaço, ainda sem a presença dos operários, consistiam na reorganização dos materiais de construção lá encontrados, nos moldes de um mostruário, para serem fotografados. Além disso, o artista realizou fotoperformances e escreveu a palavra “vitória” no chão, com uso de carvão. Mais tarde, gravou a mesma palavra em tábuas de madeira presentes no espaço, durante o mesmo período de trabalho dos pedreiros, figurando como um trabalhador a mais.
O que mobilizou a reação dos trabalhadores da obra foi a palavra. O artista passou a encontrar algumas respostas imprevistas no espaço, como a palavra “vitória” gravada em um contrapiso. Abreu também se deparou com desenhos e frases escritas em paredes e tábuas, como “quem ganha o que eu ganho, tem que fazer o que eu faço” e “aqui não basta ser do bem, tem que ser bom”. De teor irônico ou motivacional, são sentenças atravessadas pelo contexto do trabalho e que, materializadas naquele ambiente, tornaram-se uma maneira distinta de expressão e comunicação entre os pedreiros.
Pouco a pouco, os operários deixaram de ser observadores das ações de Abreu para tornarem-se agentes delas. Como consequência, o trabalho de artista abandonou sua natureza inicial para tornar-se um diálogo com os pedreiros.
Um passo além foi dado quando um dos trabalhadores, chamado Rafael, passou a criar intervenções digitais em fotografias que o artista publicou em suas redes sociais, que registravam seu processo de trabalho: imagens da obra e
fotoperformances realizadas no espaço. Sobre essas fotos, Rafael inseriu diferentes frases, sempre com a mesma fonte de estilo gótico e o mesmo enquadramento centralizado, produzindo novas narrativas sobre as imagens das quais se apropriou. É como se Rafael legendasse aquelas fotos, conferindo sentidos que, apesar de distintos daqueles previstos pelo artista, se relacionam com as cenas que vemos, uma vez que aqueles cenários lhe eram familiares. Em outro momento, Rafael passou a produzir, ele mesmo, fotografias da obra, mantendo a iniciativa de intervir nas imagens com
palavras e frases.
Todo o processo desencadeado pelas ações de Abreu culmina no embaralhamento de papéis – artista e operário – e de dois espaços laborais distintos. Ocorre uma interrupção na ordenação do mundo do trabalho, quando momentos de atividade produtiva são intercalados com desvios poéticos.
A exposição “O mundo do trabalho” é fruto dessa experiência. Ela reúne distintas imagens provenientes da obra na casa do Engenho do Mato: ações do artista; intervenções dos pedreiros; diálogos de Rafael com as fotografias de Marcos Abreu; e fotografias de autoria de Rafael. As imagens são agrupadas de modo indistinto e sem hierarquia, misturadas a alguns registros de outros contextos, como escritos do artista e trabalhos de outros autores. Forma-se, assim, uma constelação em torno dos mundos do trabalho.
Para a apresentação das imagens, foi escolhido um suporte caro ao seu contexto de origem: tábuas de madeira. Abreu, que tem a gravura como um dos seus principais meios de expressão, realiza um procedimento de transferência das imagens para essas superfícies, que são dispostas sobre cavaletes, tornando-se espécies de mesas. Sua visualidade assemelha-se à dos mobiliários de qualidade provisória construídos pelos pedreiros para auxiliar na execução de suas tarefas no canteiro de obras. Os mesmos mobiliários improvisados nos quais vemos o artista deitado, em repouso, em algumas fotoperformances que compõem sua ação: imagens que evocam contrastes entre produtividade e ócio, trabalho e devaneio.
Esta exposição questiona o que a sociedade produtivista entende como trabalho e a postura romântica que estabelece o mundo da arte como uma instância separada. O trabalhador da construção civil se desvencilha de um lugar pré-determinado no sistema produtivo para ocupar outro posto. O artista, por sua vez, é também um trabalhador. Ele adentra o espaço de trabalho dos pedreiros enquanto estes intervêm em seu trabalho artístico. A casa em construção, palco onde esses papéis são intercambiados, tem suas estruturas simbólicas reinventadas.